Uma narrativa da Prof. Lurdes Ribeiro na Crónica de Aragonez Marques/Do nosso cantinho para o vosso cantão/ Revista Lusitano de Zurique

12-02-2021

Leia aqui o artigo…

A MALTA TEM MEDO

Do nosso cantinho para o vosso cantão/ Aragonez Marques

Sabemos pouco uns dos outros. Em especial a Suíça, por não fazer parte da Comunidade Europeia, pouco ou nada é falada nas televisões públicas da Europa, e Portugal, o nosso cantinho, coloca-se em bicos dos pés seguindo o exemplo, como se não houvesse aí uma comunidade portuguesa que merecia uma maior informação. Pois bem, caros amigos e amigas desse cantão: A Coisa Aqui Está Preta, como diz a canção de Chico Buarque. Atingimos mais de 6.000 infectados e 80 mortos, num cantinho tão pequeno...Na discussão diária entre a economia e a saúde, ninguém se entende e só agora, perante esta crescente e amedrontadora segunda vaga, se começaram a confinar 191 concelhos, com o comércio todo fechado, incluindo as grandes superfícies durante toda a tarde e noite de sábado e domingo. São 7.500 milhões de pessoas confinadas. No entanto, as escolas continuam abertas, pois não precisam de professores, mas de guardadores de putos, que permitam que os seus pais trabalhem sem desculpas. Mais de 700 escolas tiveram casos. Eu próprio, pela proximidade de uma colega, estive confinado e fiz o teste, felizmente negativo e dias depois, chegou a vez da minha filha mais pequena, em contacto com um colega de sala positivo, todos fizeram o teste, todos regressaram às aulas na segunda-feira, 16 de Novembro. O curioso é que a minha colega, sem novo teste que lhe indicasse negativo, foi mandada apresentar-se na escola. Novas regras: os doentes que dão positivo, regressam aos seus locais de trabalho sem novo teste que lhes confira a negatividade ao fim de 10 dias. Nota-se que se perdeu o norte. Nas ruas, de Lisboa e Porto há conflitos do pessoal da restauração, talvez os que menos descontem de impostos, pois querem ajudas. Nunca pedi fatura num restaurante, mas com pandemia ou sem ela, passo a pedir. Ninguém se entende, mas o povo, ordeiro, cumpre e as ruas estão totalmente vazias, só carros de polícia e guarda a cavalo, como aqui no concelho onde vivo, também confinado. Melhores dias? O nosso Presidente mostrou-se na TV em tronco nu levando a vacinada gripe. Aconselhou todos os portugueses a fazê-lo. Há dias a Ministra da Saúde disse que as vacinas da gripe não iriam chegar a todos os portugueses. Como será, quando forem as do Covid? A última esperança? Vai chegar? A quem? Como? Mas preocupa-me o número avassalador de mortes registadas, tirando as do Covid. Por isso, transcrevo uma historieta, escrita pela minha colega Lurdes Ribeiro, que ma ofereceu ontem. 

Para fazer um ecocardiograma, por favor...O bulício da sala de aula é interrompido pelo toque do telemóvel da professora Gervásia da Silva. No visor do pequeno aparelho surge um número do hospital bem conhecido pela professora.- Mau! Do hospital! Que estranho! Do outro lado uma voz desconhecida anunciava à professora Gervásia que, no próximo domingo, se deveria apresentar no hospital para realizar o teste do Covid.- O quê, minha senhora? O teste do Covid? No domingo?! - a professora Gervásia estava incrédula. E a voz continuou:- Sim, minha senhora. É que na segunda-feira, pelas nove horas da manhã, irá fazer neste hospital, um ecocardiograma.- Ah! - nesse momento fez-se luz na cabeça da professora e continuou - o exame médico que estava pedido faz precisamente dois anos a dezasseis de novembro!- Isso mesmo, minha senhora. Tome atenção, que deve vir em jejum e acompanhada, não se esqueça.- Sim, sim. Obrigada pela informação, lá estarei. Há tanto tempo à espera do exame médico, não faltarei! Gervásia da Silva ficou um pouco perturbada com a notícia e, olhando para o relógio, sentiu um certo alívio ao reparar que faltava pouco para terminar a aula. Não disse aos alunos que iria estar ausente na segunda-feira. Ela odiava faltar à escola! No seu pensamento apenas estava a imagem daqueles cotonetes tão compridos do teste do Covid que tinha visto em revistas ena televisão…- Valha-me Deus! E se aquilo faz doer!?Na verdade, o seu coração também palpitava muito, desde há três anos que Gervásia da Silva começou a ter problemas de arritmias cardíacas.

Na hora de almoço Gervásia, muito acelerada, como sempre, contou a história do telefonema a Zé Paixão, seu companheiro de vida.- Oh Gervásia, minha querida, não estejas tão nervosa! Tem calma que isso não será um bicho-de-sete-cabeças! Olha, bebe um copinho de vinho para digerires melhor a comida- aconselhou Zé Paixão, uma pessoa muito calma. O domingo acordou fresco e chuvoso. O casal levantou-se, rumou até ao hospital e Gervásia lá fez o teste. Com um pouco de comichão nos ouvidos e uma lagrimita nos olhos, a professora estava aliviada.- Ai, ainda bem que já fiz isto! Olha, afinal não foi incómodo! Vamos tomar o pequeno-almoço, mas leva--me ao centro, tu sabes que gosto muito desta cidade. E lá foram os dois, recordando quando iam ao centro da cidade por causadas consultas mensais no ginecologista. Deitando contas aos nove meses de gravidez de cinco filhos são quarenta e cinco as vezes que fizeram o trajeto, filhos hoje já com filhos, Gervásia e Zé Paixão, tinham a casa repleta de netos e como as reformas não vinham, era mais uma professora de risco e com quarenta e três anos de escola e mais de sessenta de idade. Na segunda-feira, perto das sete da manhã, o casal rumou novamente à cidade que fica a mais de cento e cinquenta quilómetros. Gervásia da Silva estava muito nervosa e Zé Paixão com o seu cálido sorriso brincava com a situação. Chegaram ao hospital, colocaram as benditas máscaras e dirigiram-se à portaria onde lhes indicaram que fossem para as consultas externas.- Senhora enfermeira, por favor, para fazer um exame ao coração, onde me devo dirigir?- Olhe, pergunte ali àquela funcionária- respondeu a enfermeira, apontando para o lado esquerdo. A funcionária indicada, atrás de uma mesa que tinha gel desinfetante e uma caixa com máscaras, fez uma cara de susto quando Gervásia e o marido se dirigiram a ela para perguntarem pelo local onde se faria o exame.- Quem vai fazer o exame? - perguntou antipaticamente.- Eu - respondeu Gervásia já com os calores a subirem pelo esófago.- E você o que está aqui a fazer? -olhando com desdém para Zé Paixão. Gervásia muito indignada com aquela atitude levantou um pouco a voz e disse-lhe:- Para que saiba, ele é meu marido e está aqui para me acompanhar, pois disseram-me pelo telefone que deveria estar acompanhada para realizar o exame e tento saber há meia hora em que sítio deste hospital o posso fazer. A "cara de susto" ironizou:- Acompanhada, mas até ali à porta, ele não pode estar aqui.- E para que me mandaram vira acompanhada? Para acalorar mais a situação, Zé Paixão perguntou se as máscaras eram para oferecer uma vez que precisava de uma, porque a dele tinha um elástico partido.- Isto não é para oferecer, são para os doentes e não mexa, se faz favor! A professora, que altera rapidamente o seu humor perante certas atitudes e com receio de "acordar" alguma falta de educação, pediu ao marido que saísse. Mas Zé Paixão já tinha tocado na ponta de uma máscara e a mulher não teve outro remédio senão dar--lha.

Como o Covid está a comer "o coco" às pessoas! A funcionária deu a sensação de medo, de repulsa pelos outros e, afastando-se, disse a Gervásia da Silva para se dirigir aos seguranças que estavam no meio do "hall" de entrada. Entretanto, o marido foi para a rua e ela perdida naquele mundo. Depois de repetir vezes sem conta a tal pergunta, um dos seguranças apontou o dedo para o chão e informou:- Minha senhora, siga a linha roxa. Gervásia, que mais parecia um barril de pólvora, lá descobriu a linha roxa entre tantas, até parecia que no chão estava desenhado um arco-íris. Seguindo a linha roxa durante uns metros em frente, um quarto de volta depois virou à esquerda e chegou a um guiché onde, sem que tivesse tempo para se informar, ouviu:- O que anda aqui a fazer? Não pode estar aqui! Humildemente, ainda cumprimentou a funcionária e explicou o porquê de estar ali:- Preciso de saber onde faço o ecocardiograma.- Ah! Não, não, isso não é aqui. Isso faz-se no quinto andar, na cardiologia. Tem de sair por aquela porta e encontrar o elevador ou pergunte a um segurança.- Valha-me Santa Engrácia! Perguntara um segurança! Mas que informações tão confusas!- "o barril de pólvora" estava quase a explodir pelo corredor escuro e frio. Mais ao fundo, encontrou o elevador e pressionou o botão da chamada. Decorridos uns segundos, abriu-se aporta mas, de repente, uma senhora muito chique de malinha de verniz no braço, enfiou-se dentro da caixa metálica e, para espanto de Gervásia, cada vez mais aflita, disse-lhe:- Só pode ir uma pessoa.- Mas eu estava primeiro! - retorquiu Gervásia da Silva, cheia de azedume e com vontade de lhe puxar os cabelos. O elevador não demorou a descer, a professora entrou e procurou o botão do quinto andar. Qual quê! O elevador só subia até ao quarto andar! Masque situação caricata...Gervásia, ao rubro do nervosismo, disse em voz alta:- Que horror! Vou chegar mais que atrasada e com o coração fora do sítio! Mas que chatice! Chegada ao quarto piso, deparou-se com uma porta e dois guichés. Mal balbuciou meia palavra, foi imediatamente avisada por uma voz forte:- A senhora não pode passar para aqui!- Caramba, não tenho a peste, só preciso de ajuda!- Está na linha amarela, aqui só podemos estar nós e, ironicamente, "os que lidamos com a peste todos os dias".- Eu sei, tenho os pés na fita amarela, mas como vou para o quinto andar? E a voz continuou:- Aí à esquerda estão as escadas. Furiosa com a situação, virou as costas e nem agradeceu a informação. Depois de umas dezenas de degraus ei-la no quinto piso! Uma súbita alegria invadiu Gervásia que já estava a sentir-se doente. Uma sala pequena com duas portas. À direita a pediatria e à esquerda a cardiologia.- Alto aí! Onde pensa que vai? Apeteceu-lhe deitar-se no chão em posição fetal e meter o dedo na boca, mas venceu o desespero e "plantou--se" à frente da porta da cardiologia que estava aberta e esperou. Dali não sairia, passasse o que se passasse. Alguns minutos depois, veio de lá uma enfermeira muito simpática, finalmente, que com voz ténue levantou o ânimo da professora. Já era hora de encontrar alguém gentil naquele hospital! Depois dos acertos com alguma papelada, a enfermeira aconselhou a professora a sentar-se para esperar pelo médico. Já mais calma, telefonou ao Zé Paixão de quem sentiu saudades naquele percurso sombrio.- Zé, finalmente cheguei ao quinto piso. Nem imaginas as peripécias! Já te contarei...Ali sentada e muito só, ia observando o movimento dos médicos, enfermeiros, empregados da limpeza e de alguns pais que saíam e entravam na pediatria. Estava incrédula! Pensava para os seus botões:- Eu, a professora, que todos os dias incute aos seus alunos as palavras bonitas: bom dia, boa tarde, olá, como está… transmito-lhes tantos valores para serem no futuro cidadãos com regras e coração, e depois, vejo este pessoal adulto com formação académica que mais parecem robots. Não precisamos ser conhecidos para nos cumprimentarmos… um bom dia é tão fácil de pronunciar e sabe tão bem ouvir! Será que o maldito Covid também atacou a "bolsa" dos valores humanos? Em que Mundo tão desgarrado vivemos? Embrulhada nos seus pensamentos e envolta numa certa nostalgia, Gervásia da Silva foi chamada para realizar o tão esperado ecocardiograma. Já não era sem tempo. Dois anos à espera, nessa altura ainda nem a sua última neta tinha nascido!

Lurdes Ribeiro


É possível que a minha colega Lurdes, que ainda hoje faz tanta falta na escola (conforme fotografia que junto do dia de S. Martinho, onde me "entalou" para participar numa aula com a Maria Castanha e o Santo da capa, para poder motivar o grupo para a diferença de discurso directo e indirecto, sem dar por isso, numa tarde em festa como a escola deverá ser todos os dias) nunca mais vá a um hospital até que tudo isto passe. É pena, pois só o afastamento provocado por estes maus funcionários públicos é responsável da duplicação de mortes para além das do Covid. A malta tem medo!

Aragonez Marques