Leia aqui o artigo de Aragonez Marques na revista Lusitano de Zurique- Setembro 2020

02-09-2020

ACABARAM AS FÉRIAS


Muitos de vós voltastes. Não foram férias iguais às de sempre. Faltaram as festas das aldeias, os foguetes, a música, as procissões... aquele abraço que vos gostávamos de dar, ou demos a medo, quase às escondidas.

Morreu o Dr. Leonel Cardoso Martins, pai do Rui Cardoso Martins, amigo e escritor, que na hora da despedida disse aos filhos, " cuidado com a palavra que se diz a mais ".

Fui aluno do Dr. Leonel, foi ele que perante as desculpas criativas que lhe apresentava na justificação das minhas faltas, me disse, passa isso a escrito, terá uma nota positiva, conta as mentiras num papel.

Passei a inventar histórias nas "redacções" e ele colocava uma nota elevada a vermelho no cimo direito da folha.

Fez-me gostar de escrever, fez-me gostar das suas aulas, transformou-me num contador de histórias, tornou-me num ficcionista amante de tudo o que tenha letras.

Devo-lhe este gosto pela escrita.

Foi o melhor professor de português que tive e dentro do cuidado com a "palavra dita a mais", reservo-me para não desbocar sobre os abraços e afectos que esta pandemia tenta destruir.

Por isso, este mês ofereço uma história. Tem mais a ver com afastamentos nas relações próximas. Pelo menos, ofereço-vos uma história porque ler é fazer pensar.

Um casal amigo meu divorciou-se.

Este o texto que pensando neles escrevi, e dou aos leitores da revista, "Lusitano de Zurique".

Fala de príncipes e princesas, fala do nosso dia a dia, porque alguns de nós são príncipes e algumas princesas.

Casas onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão.

Dedico aos meus amigos que se divorciaram sem pandemia.


Era uma vez uma princesa que vivia, como todas as princesas, num palácio.

Preparada desde pequena, com bonecas e fogões, para poder um dia servir qualquer príncipe a última metade da sua vida, cresceu.

Como o peixe que se julga livre na sua rotina secular de subir o rio apenas naquela época do ano buscando a desova como tradição geneticamente interiorizada, fez-se princesa quando a idade lhe ditou que era hora, só que no seu interior, e com o passar do tempo, descobriu que o seu palácio era um castelo e o príncipe o proprietário provisório aguardando a herança das terras do pai.

Proprietário do castelo, mas também o seu.

A princesa vivia segura dentro dele. Aquela segurança de quem tem um príncipe e será herdeira de um reino que passará aos filhos.

Lá dentro nada lhe faltava, parecia, mas o mundo, esse, só o via das ameias de pedras escuras e sobrepostas, projectado em horizontes de impossíveis, castradores de liberdade e balizadores contratuais de comportamentos.

Enquanto ia passando veloz a segunda metade da sua vida, descobriu a rotina, descobriu sentimentos que era obrigada a compartilhar apenas consigo mesma.

Começou a entender que a vida corria rápida e igual e que não era só o seu corpo que estava preso no castelo, mas também os sentimentos, e com o passar dos dias, notou que muitas vezes as lágrimas iluminavam os seus olhos e não sabia porquê.

Gostava de fazer coisas novas, coisas que sabia ser capaz de realizar com êxito... mas era conservador o seu palácio.

Viria daí aquela ansiedade que certos dias, cada vez em maior número, lhe apertava o peito e lhe humedecia os olhos grandes impedidos de ver mundo?

Às vezes apetecia-lhe sair das muralhas, enfeitadas com grandes jardins interiores, mas rodeados, de um fosso impeditivo.

Nunca entendeu se esse fosso, apenas transponível por uma ponte levadiça de que não dispunha de força para levantar, servia para protegê-la no seu castelo ou para prendê-la dentro dele.

Cansada de se deitar e levantar igual, cansada do espaço que percorria limitado, um dia arriscou e saltou o fosso. Não percorreu o espaço livre cá fora até muito longe, pois temia o não poder regressar já ao castelo, à segurança, para que fora criada.

Quando voltou, fechou-se no castelo durante horas, a forma como fora educada (ou domesticada) trouxeram-lhe sentimentos de culpa pavorosos. Trancava-se na capela do castelo como se Deus condenasse alguma vez a busca da felicidade de alguém.

Mas aquela rotina, aquela sensação de escrever poemas que ninguém lia, aquela certeza de ser capaz de fazer mais, levou-a a saltar de novo o fosso, desta vez um pouco mais longe, mas sempre com o regresso como certeza ao castelo de segurança.

Depois, aquela sensação de culpa que a levava a não tentar nova aventura além muralhas durante meses.

Mas eram grandes as tentações do mundo, grandes as portas de tanta coisa para fazer, e tantas, tantas as portas e as coisas.

Ainda adolescente, enquanto preparava a segunda metade da vida, poderia ter ficado com outro príncipe, quem sabe se castelo ou palácio? Só que aí não era a norma tradicional de viver em função de quem, era amor.

A palavra amor é ridícula quando se não ama.

Não calhou a entrada por essa porta, mas a adolescência é marcante e o amor quando verdadeiro nunca se esquece. Pode camuflar-se, enrolar-se nas lianas do tempo que cobrem as florestas com os milhares de gotas de água que caem e fazem crescer o emaranhado da vegetação, tal como a vida das pessoas com a queda dos milhares de horas que enleiam os destinos.

A princesa tivera um amor, e hoje tantos anos passados, parecia mais vivo, mais maduro, mas também mais ameaçador da segurança do castelo que nunca conseguiria ser palácio.

Tocou o telefone.

Nunca era a princesa que atendia. Naquele dia fê-lo, como se o destino lhe coordenasse os movimentos.

- Sou eu. Quero ver-te.

Um arrepio percorreu-lhe o corpo numa decisão de dizer basta.

- Passo a buscar-te dentro de meia-hora.

A princesa pousou calmamente o telefone, enquanto por dentro se dava a mestria da explosão de adrenalina subindo pelo corpo como champanhe desenrrolhado lentamente.

Subiu ao quarto. Olhou o espelho. Com o polegar e o indicador abriu o olho esquerdo. Depois com a outra mão fez o mesmo ao direito.

Os quarenta anos ameaçavam-lhe o rosto, e aquelas ténues rugas começavam o aviso.

Renasceu então, como por magia.

Desceu as escadas, ignorando os guardas, as vizinhas nas janelas viram-na saltar o fosso sem medo e entrar no carro.

Partiram dali, pela primeira vez sem pensar em como voltar a meter a princesa no castelo sem que ninguém soubesse.

Pararam no cruzamento de uma estrada perdida, lugares que a natureza oferece aos plebeus errantes sem dinheiro para comprar espaços de tempo, no tempo confortável das hospedarias, entre a noite e a folhagem.

Apenas a luz laranja do rádio alumiava a noite aquecendo timidamente com uma música ligeira e baixa o momento.

Plebeus errantes...

Abraçaram-se, beijaram-se, fizeram o amor com o espírito sem se tocarem os corpos, naquele platonismo infantil que teme destruir o sonho.

Em imaginação, as roupas ficaram espalhadas nos bancos, vidros embaciados de respirações alternadamente comuns, loucura contrastando com a chuva miudinha que caía. Depois suados, abriram o tecto eléctrico do carro e deixaram a chuva embalar-lhes a visão imaginária dos corpos nus no meio do riso e do prazer.

Tiveram que passar tantos anos para que a princesinha se sentisse verdadeiramente feliz.

Agora sabia que o poderia ser sempre que entendesse, apenas tinha que decidir se voltaria ou não ao castelo que já não considerava seu.

Afinal, tinha descoberto com toda a certeza que não se tratava de um palácio.

Tinha também a seu favor, o saber que as muralhas, o fosso e a ponte levadiça, não existiam para protegê-la, mas para mantê-la.

Só lhe faltava decidir.

Voltar ou não voltar?

Estava facilitada a decisão, mas só ela sabia como era difícil optar, entre a segurança rotineira, ou a aventura sem certezas de futuros, presentes felizes, é certo, mas muito para trocar.

Coragem?

Apenas o amor sabia ser verdadeiro, embora uma voz pequenina lhe repetisse no ouvido:

- E se daqui a algum tempo apenas trocaste um castelo por outro?

Deveríamos poder ser nós a controlar o nosso destino.

ARAGONEZ MARQUES

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