Leia aqui o artigo de Aragonez Marques na revista Lusitano de Zurique- Julho/Agosto 2020

10-07-2020

A PRAIA ONDE MORREM AS BALEIAS 

OU UMA BRAÇADA PARA FORA DA DEPRESSÃO

Capa da revista Lusitano de Zurique /Edição Julho-Agosto 2020
Capa da revista Lusitano de Zurique /Edição Julho-Agosto 2020
Aragonez Marques
Aragonez Marques

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Eu sou a praia onde morrem as baleias. Não sei porque me escolhem as baleias para morrer. Nem sei sequer se é isso que desejam, sei apenas que é a mim que chegam e que ao longo dos anos, é em vão que luto, dia a dia, para guiá-las de novo ao oceano, o que é difícil.

Uma baleia pesa muito, e se permitem porque inofensivas o meu contato com elas na água, torna-se muito dificultosa a tarefa de as desencalhar dos meus baixios.

São poucas as que conseguem recuperar os seus rumos e muitas, depois de o conseguir, regressam de novo para agonizarem definitivamente.

As minhas areias, embora doiradas ao sol e cobertas de mil gaivotas que deixam as suas marcas no chão húmido, pouco duradouras que a água apaga quando sobe a maré, não passa de terra leve e triste que oculta cadáveres tapados.

Dantes chegavam mais espaçadamente no tempo e eu, pensando ainda ser uma coincidência, esforçava-me com uma maior ilusão em salvá-las, depois com o passar dos anos, transformei em rotina passar os dias a abrir valas, à mão, enormes, para onde as arrastava e cobria, tentando mais salvar a imagem paradisíaca da minha baía dourada que os turistas aplaudiam, do que a vida destes gigantescos mamíferos que me procuravam, vá-se lá saber porquê.

Às vezes acordava envolto em medos e dormia mal com pavor aos pesadelos.

Na minha pressa, agora objetiva, de manter superficialmente a praia limpa, duvidava se alguma vez enterrara alguma daquelas criaturas viva.

Este pensamento arranhava-me como o frio cortante que enfrento no inverno, e porque constante, passou a arranhar-me durante todo o ano transformando-me em praia com inverno permanente, com marés vivas, ondas altas e ventos que dobravam as palmeiras, outrora belas sempre, tanto calmas como promessas com as suas novas folhas na primavera, como acolhedoras nas suas espraiadas sombras no verão, como poéticas nos pores-de-sol de outono ou dançarinas no inverno, impedindo o vento nesse entreter de baile, de consumir as dunas.

É neste inverno permanente, agora sem música para o baile ou palmeiras para dançar, que hoje continuo a assistir à vinda das baleias e à destruição das dunas.

Deixei de acreditar que as posso salvar e consumo meses inteiros a abrir covas e a enterrar. Algumas dessas covas nem sequer têm ainda baleias mortas. Hoje já não me preocupo com a paisagem e muito menos com os turistas, sou no entanto mais sensível aos cheiros. Abro buracos para evitar os cheiros. Cavo e tapo porque as baleias cheiram mal. Perdi a ilusão de poder salvá-las.

A última vez que o fiz, levei quase um mês envolto em suores e canseiras, empurrando uma baleia resistente perante os olhares dos turistas, mar dentro. Assim que virava costas, ela aí vinha, boiando, atrás de mim, aproveitando as ondas calmas para me impregnar de odores.

- Deixa-me! Segue o teu caminho! Eu só te posso dar uma cova, nada mais. Ainda por cima, uma cova pequena, que tenho os dedos feridos de tanto escavar com eles. Dedos que quase não têm impressões digitais, dedos quase sem identidade. Deixa-me! Para ti tenho uma cova pequena, nada mais.

Nunca fui dos melhores nos meus entendimentos dialogantes com as baleias, e talvez este "nada mais" fosse entendido como uma forma do verbo "nadar", ela continuava a perseguir-me.

- Deixa-me! - e pedi por favor.

Ignorou este meu último queixume. Não sei porque mistério continuava a escolher-me a mim, trocando pelas minhas águas baixas e sufocantes a liberdade das profundezas do mar, onde com a barbatana horizontal desenhava o azul dos céus e pelo seu orifício atirava repuxos mais altos do que metade da cova de areia escaldante que a esperava comigo. Ajustada ao tamanho do seu corpo. Nada mais ali cabia. Apenas o seu corpo, nunca a imensidão do seu espírito.

- Vai-te! Deixa-me! - e batia ferozmente na água tentando afugentá-la, ruído e mais ruído, que a fizesse renunciar à morte nem que fosse pelo medo.

Parece que finalmente se foi.

Deixei-me eu agora arrastar na espuma das minhas ondas que me enrolaram cansado na areia.

Reparei então, que durante este tempo, enquanto eu lutei para salvar uma baleia, tinham chegado à praia sessenta, estas já cadáveres, trocando moscas por cheiros.

Levantei-me em ângustia, gritei, ergui o mar e agitei a areia espetando os seus grãos de quartzo como agulhas no vento. O que restava das palmeiras foram abanadas até à exaustão e depois, numa tristeza, numa resignação, resignação, resignação, recomecei, recomecei a abrir covas, abrir covas, maquinalmente, maquinalmente...

Todo o peso do infortúnio se abateu na minha baía nesse instante. Varreu-se o presente e o futuro, só o passado, essa repetição deste presente e imagem de provir invadia tudo.

Covas, continuar a abrir covas para sempre.

Revoltei-me na praia e transformei-me naquele momento em local de tormenta.

Os que observavam a minha baía naquele instante, nada fizeram.

Indiferentes ao sofrimento daquela agressividade da natureza, limitaram-se a levantar bandeiras vermelhas, e quando já cansado e sem forças para cobrir de areia os sessenta buracos onde com esforço ainda tinha conseguido depositar os cadáveres que arrastei um a um, limitaram-se a colocar cartazes que alertavam para o perigo de que alguém pudesse cair naquelas covas.

Fui considerado uma praia perigosa, uma praia a evitar.

Sempre foi assim.

Cada vez que como praia necessitei de auxílio, apenas me cercaram de bandeiras e cartazes de perigo, regalando-me a quarentena forçosa até que sozinho, acabasse as minhas tarefas e pintasse a praia, cada vez mais retocada, mais maquilhada, em doirados de areia e sol, palmeiras em descanso e céu sem núvens, passaporte de relações com as gentes que então aí iriam desfrutar, mais amantes de sedas e brocados que de corpos nús.

E eu? Que sempre aceitei qualquer relógio? Mesmo quando alguém me disse que não passava de um relógio parado? Mesmo antes de ter lido, ouvido e confirmado, que mesmo um relógio parado, duas vezes por dia tem as horas certas?

Quem me aceita como sou, como destino de um mistério, sem serem as baleias? Essas criaturas grandes e pacíficas que me procuram, vamos lá saber por quê? Ainda por cima para morrerem em mim?

Voltemos à praia.

Voltemos à praia onde morrem as baleias.

Voltemos a mim.

Acabei a tarefa extenuadora de me limpar, mar calmo de um lado, areia alisada do outro, céu por cima como mandam as regras de todas as praias, todas as covas tapadas, as moscas e os cheiros longe dali, olhei-me nas águas.

O meu reflexo ia-se alterando com o vai-vem das águas, o rosto era distorcido, umas vezes alongado, outras com formas lunares, havia dificuldade de saber como era realmente. Tinha no entanto os olhos fundos e vermelhos, as mãos doridas e lixadas, não sei de onde mais uma vez me vieram as forças para terminar tamanha tarefa.

Sentei-me, mas tive poucos momentos para gozar o descanso.

Olhei o horizonte.

Não queria acreditar.

Gritei, arranhei a areia, esfreguei as costas nas palmas pontiagudas das palmeiras, feri os pés de raiva com as conchas mortas também. - Não posso crer! É ela! A estúpida de novo. Vem para cá! - gritei em desespero - Fora! Fora daqui! Aqui não! Aqui não! Fora! - e agitava os braços no ar impedindo-a de regressar. - Vais morrer idiota!

(Sinceramente naquele momento preocupava-me mais com o trabalho que a sua morte acarretaria do que a sua vida)

- Vais morrer idiota! Para quê? Porque é que aqui? Fora! Fora! - e agitava as minhas águas e levantava as minhas areias e dobrava violentamente o que restava das minhas palmeiras.

Insensível ela aproximava-se, parecia que descansava nas águas. A distância ia-a fazendo cada vez maior.

Sentei-me desiludido.

Ela foi-se aproximando, mas de repente, parou. Muito antes do recife. Tinha percebido onde terminava a liberdade do mar e começava o perigo da praia. Movimentou-se então, evitava a todo o custo as águas baixas da minha praia, as minhas águas. Mergulhou e bateu com a barbatana no azul forte fazendo saltar um chorro de água em cascata circular e foi então, supresa das surpresas, que vi outras duas pequenas barbatanas chapinharem o oceano, mais pequenas do que a cabeça da mãe. E eu que pensava que as baleias só podiam ter uma cria de cada vez. Estava atónito. Havia vida pela primeira vez na minha praia depois de tantos anos.

Havia vida novamente em mim.

Não me restavam dúvidas, a baleia desta vez não regressava para morrer, vinha saudar-me e apresentar-me as crias que trouxera consigo do vasto oceano.

Levantei-me e ri. Ri muito. As minhas gargalhadas ecoavam nas escarpas e eram molhadas, porque uma grande vontade de chorar me vestiu o peito e lavou a cara.

Saltei, acenei, e ela feliz saltava com as pequenas, dialogando comigo numa mímica agradecida.

Dei-me conta então, que tempos houve, em que gostei de ser a praia onde morrem as baleias, talvez por ser a única forma de ter junto a mim gente, turistas, que se deitavam em mim, e desfrutavam das minhas palmeiras por esse tempo de pé e viçosas, até terem uma boa fotografia de uma baleia morta, ou me auxiliavam a levá-las para o mar alto, com o mesmo fim, deixando-me logo que a imagem ficava gravada e pronta para ser reproduzida e mostrada a outros turistas, não se preocupando se a mesma tinha sobrevivido ou não.

Turistas, apenas turistas.

Sempre turistas da vida. Sacadores de momentos à distância, não bebedores da mesma, e que eu, proprietário de uma praia, pobre diabo, tinha a ousadia de confundir com aplausos e até mesmo com amor.

Há decisões na vida que se têm que tomar rápido. Sem necessidade de tempo para pensar. Pensar muito pode levar ao adiamento das decisões.

Entrei na água, baloucei-a ritmada, cobri-me, atravessei a distância entre nós sem nunca olhar para trás e esquecendo as sessenta covas que tinha acabado de cobrir com os cadáveres dentro, atravessei as águas baixas, nadei a partir do recife e juntei-me às crias.

Parti com elas.

Despi-me da praia, abandonei as bandeiras vermelhas e os repetidos cartazes de perigo que me isolavam e impediam.

Nadei com elas, nadei e continuo nadando.

Deixei de ser uma praia onde as baleias vão morrer.

Sou uma baleia que guia outras no evitar os recifes e as águas baixas.

Hoje já não sou uma praia de baleias mortas.

Hoje sou uma baleia que só procurará a sua praia no fim da caminhada.

Confesso que estou a gostar de fazer esta viagem.

Afinal o que eu sempre gostei, foi de água.

Aragonez Marques