JÁ ESTÁ NA RUA A REVISTA LUSITANO DE ZURIQUE DE OUTUBRO. LEIA AQUI A COLABORAÇÃO MENSAL DE ARAGONEZ MARQUES.

19-10-2019

Do nosso cantinho para o vosso cantão- LARANJAS DOCES

LARANJAS DOCES

O meu avô chamava-se José Matias Marques e se fosse vivo teria hoje 150 anos. Só soubemos que tinha Matias no nome quando foi necessário, depois do funeral, pedir-se uma certidão de nascimento. Toda a vida assinou por José Marques, era conhecido por Senhor Marques, Marques Pintor (a sua profissão com que criou quatro filhos) mas de Matias, nada. Soube mais tarde pelo meu pai, que retirou Matias do nome, porque na terra, o Dominguizo, aldeia do sopé da Serra da Estrela onde nasceu até fugir da miséria, Matias era como se chamavam os burros, ao ponto de quando alguém queria ofender outro alguém, já dizia:

- Tu não passas de um Matias!

O meu avô era um grande contador de histórias e vivia com algumas dentro dele. A mim contava-me muitas, debaixo da laranjeira do quintal e as que eu mais gostava eram as do seu tempo de tropa, quando como telegrafista de Sidónio Pais, ouvia, relatava e respondia.

Quando os filhos resolveram abrir-lhe a carteira de couro, que ele nunca deixava tocar, ficaram surpresos, dentro dela não havia notas apesar de volumosa, gorda, inchada, atafulhada. Dentro tinha pensamentos, poemas, recortes de jornal, apontamentos manuscritos de histórias de vida e uma fotografia de Sidónio Pais.

Lembro-me do meu pai ter dito:

- E este quem é?

Perante a surpresa, uma vaidade e um carinho de saudade encheram-me de orgulho. O meu avô tinha histórias que as tinha contado só a mim.

Lembro-me de um dia, debaixo da laranjeira enquanto ele descascava uma laranja me ter dito:

- São doces, não são?

Vou contar-te uma história, e começou:

- Quem diria que antigamente, não havia laranjas doces. Eram amargas, azedas mesmo e eram comidas apenas como remédio, como dantes na escola as crianças bebiam uma colherada de óleo de fígado de bacalhau ou como aquela vacina, contra a paralisia infantil, que te metiam na língua com gotinhas e tinham que te dar logo de seguida uma colherzinha de açúcar para não vomitares.

Eu ouvia e perguntei:

- E os médicos receitavam as laranjas para quê?

O meu avô com um gomo na mão continuou:

- Havia uma doença muito má chamada escorbuto. A falta de vitamina C fazia com que as pessoas ficassem com as gengivas moles, podres mesmo, e os dentes caiam. Como nesse tempo não havia placas postiças nem varinhas mágicas para fazer das sopas papas, acabavam por morrer ou das infecções ou de fome. Os nossos marinheiros descobridores, depois de saírem de Portugal paravam nas Canarias para encher os porões de laranjas, pois enfrentando os mares durante meses e mesmo anos, o escorbuto matava as tripulações.

Eu ouvia, enquanto o meu avô metia o gomo na boca, mastigava e continuava:

- O mundo está cheio de conhecimentos, todas as culturas são importantes e quanto mais viajamos mais aprendemos. Quando os portugueses chegaram ao Norte de África, ficaram muito surpreendidos porque lá, as laranjas eram doces. Aprenderam e trouxeram os enxertos e passámos a ter umas laranjas, um pouco mais pequenas a que chamámos tangerinas, porque a cidade onde pela primeira vez as provaram era a cidade de Tânger. Os nossos vizinhos espanhóis chamam-lhes "mandarinas", que vem de "mandarim", porque descobriram estas laranjas doces na China. Eu penso que foi Fernão de Magalhães, português ao serviço de Espanha, quem as descobriu mas isso é outra história que te contarei noutro dia.

Esticou-me um gomo da sua laranja, que eu comi com um outro prazer, e a laranjeira do quintal passou a ser para mim uma árvore mágica.

Trouxe até vós estas memórias porque na última crónica relacionei a religião com a história e desta vez quis relacionar a história com a nossa língua.

Fiquem bem até Novembro e já agora aprendam nesse cantão o mais possível, para trazerem mais conhecimento para o vosso cantinho.

Portugal agradecerá o vosso contributo, como ainda hoje agradece as tangerinas aos nossos marinheiros portugueses.

Já agora, guardem e tragam também as vossas memórias, para as transformarem em histórias que possam contar a netos e bisnetos, debaixo de uma qualquer laranjeira de qualquer um dos vossos quintais.

Vale a pena.

Aragonez Marques