"Cotovelo Contra Cotovelo", o último artigo de Aragonez Marques no Lusitano de Zurique

02-06-2020

Cotovelo Contra Cotovelo


A pandemia tem prejudicado todas as pequenas empresas em Portugal. As editoras estão fechadas, as apresentações de livros proibidas... os escritores, sem saber o que fazer. Foi por isso que resolvi editar aqui, dois capítulos do meu próximo livro que se chama "A Taberna de Avelino Camejo" - quem sabe não poderá um dia ser apresentado em Zurique? Dantes, a dor de cotovelo era uma coisa feia; agora, cumprimentamo-nos com eles. Não entendo esta coisa... prefiro os afectos, por isso vos dou esta prenda.


20. O funeral de José Boavida

Foi grande. Muita gente, clientes, fornecedores, familiares da mulher, cunhados, cunhadas, sobrinhos e sobrinhas, mas amigos contavam-se pelos dedos. José Boavida nunca foi de grandes relações e eram mais as amigas da mulher, todas velhas de preto e carpideiras, que os vivaços amigos dele, alguns mesmo não estiveram presentes porque não quiseram, tal como ele, eram adversos ao sofrimento. Quando tudo terminou, Avelino, a mulher e os filhos, ainda pequenos, regressaram a casa da tia para ela não ficar sozinha. A mais pequenina abriu a televisão, a tia estava no quarto. Avelino apagou-a de imediato:

- Hoje não há televisão filhota, é um dia muito triste.

Foi Pituca que saiu do quarto quando o ouviu, para pasmo de todos tinha mudado de roupa, preto fora, e trazia um vestido branco com desenhos cinzentos.

- Aqui tudo continua igual, acende a televisão na mesma.

Depois voltando-se para Avelino:

- Viste alguma lágrima debaixo dos meus óculos escuros no funeral? Já não tenho lágrimas, secaram os meus olhos depois da morte de João Fernando, o meu rico filho, e algumas que ainda ia tendo, levou-as o teu tio. Tratei-o sempre bem em vida, agora acabou-se. Já está, já está. Não o podemos trazer de volta, quero toda a gente feliz a começar por mim.

Ela mesma abriu a televisão. Dois meses depois, impediu a venda do carro do marido, tirou a carta de condução, e imaginem, matriculou-se em aulas na piscina pública e aprendeu a nadar. Com a morte do marido, tinha nascido outra mulher.

21. Nova vida

Durou alguns anos esta nova mulher, e logo que lhe faleceu o pai, alguns anos depois do acidente de João Fernando, começou a sair com as amigas e ainda fez algumas viagens a Gibraltar, Ceuta, Madeira e Açores e nas férias, alugavam um apartamento na praia de Sesimbra, durante os primeiros vinte dias do mês de agosto. Todas viúvas, menos a Dona Maria, que apaixonada por um homem que nunca se apercebeu que ela o amava, casou, e mesmo depois de ter casado, tirava-lhe sempre o chapéu quando a cumprimentava na rua, desconhecendo sempre esse amor nunca manifestado, até que a morte o levou com oitenta e um anos, deixando mulher, filhos e netos. Dona Maria fez o seu próprio luto interior e, embora solteirona, sem nunca ter conhecido homem, permitia a quem a não a conhecia que a julgassem viúva, inventando ou fugindo sempre à conversa se alguém lhe perguntava algo sobre o marido. Só respondia, sempre igual, quando lhe perguntavam se tinha filhos:

- Deus nunca o quis.

Este grupo de mulheres habituaram-se a tomar café depois do almoço onde falavam, riam e nunca choravam. As tristezas eram passado e agora, quando não viajavam, davam grandes passeios, três atrás e duas à frente, no carro do defunto de Pituca, que nunca permitiu que fosse vendido, chegando mesmo nos domingos, depois da missa a irem almoçar fora, clientes habituais do restaurante da Aldeia de Varche. Canja e frango assado, a especialidade, e depois, sobremesas variadas. Assim viveram durante quase dez anos, até que as doenças as começaram a dividir e a regressarem a casa dos filhos, a última porta das suas vidas. Só Dona Maria passou a ir viver com uma irmã, mas pouco tempo, pois preferiu ir para um lar. Dona Pituca, sem filhos, foi para casa do sobrinho. Deveriam ter começado a viver muito mais cedo. (...)

Aragonez Marques

(*) In A Taberna de Avelino Camejo ...a ser publicado por Filigrana Editora...

NOTA: Para o próximo mês terei que falar sobre um grupo chamado "Alentejanos no Facebook" que merece uma referência negativa. Mas hoje, não me apetece aborrecer. Abraço a todos os leitores e amigos. Leitoras e amigas, também, obviamente!